Cuidados Para Prevenir a Configuração de Uma Sociedade de Fato
1 de março de 2024
Artigos
Fernando Abel Evangelista
“Nem um homem é uma ilha, completo em si próprio”. Essa conhecida frase, de autoria do poeta inglês John Donne (1572 – 1631), foi e continua sendo muito explorada em diversos ensaios filosóficos sobre a natureza gregária do ser humano. Mas, ainda que exista a discussão sobre a necessidade ou não de relacionamentos interpessoais para o bem-estar do homem, há uma área na qual esse relacionamento é indispensável: no mundo dos negócios.
No ambiente de negócios há diversos tipos de relacionamento, aquele com os clientes, com fornecedores, concorrentes, colaboradores, Governo, parceiros, dentre tantos outros. É interessante observar que, para cada tipo de relacionamento, há um tratamento jurídico específico: Direito do Consumidor para os clientes, Direito Contratual para os fornecedores, Direito da Concorrência para os concorrentes, Direito do Trabalho para os colaboradores, Direito Administrativo ou Tributário para o Governo… E para os parceiros?
A realização de parcerias entre empreendedores é extremamente comum. A união de forçar costuma trazer uma série de benefícios para os envolvidos, em especial através do compartilhamento de conhecimentos, habilidades, recursos e, ao final, resultados. Entretanto, é importante que essa parceria seja cuidadosamente ajustada entre os envolvidos, tanto para prevenir futuras discussões sobre o papel de cada um ou sobre a remuneração dos participantes, quanto para que não se configure uma sociedade de fato entre as partes, sujeitando-as, assim, ao Direito Societário.
Mas o que é uma sociedade de fato? Em linhas gerais, uma sociedade fato é uma associação de pessoas físicas ou jurídicas que exercem uma atividade econômica em conjunto, objetivando o lucro, mas que não possui um ato constitutivo formal (por escrito) registrado perante o órgão competente (Junta Comercial ou Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas). Assim, mesmo que formalmente não constituída, em virtude das características que revestem essa atividade conjunta, essas sociedades podem ser reconhecidas pela Justiça como tal.
Dentre as principais características que podem ser suscitadas como fundamento para o reconhecimento de uma sociedade de fato destacam-se a perenidade da parceria, o aporte de recursos pelos parceiros para a estruturação do negócio, como, por exemplo, a aquisição de máquinas ou produtos em conjunto, a locação de um endereço próprio para o desenvolvimento da atividade, a contratação de colaboradores para atender as demandas advindas da parceria, bem como a própria forma como a parceria comercial se apresenta no mercado (não raro, como verdadeira “sociedade”). Estas características denotam a intenção dos parceiros (ainda que não declarada expressamente) de se associarem (affectio societatis[1]).
Mas por que isso é um problema? O reconhecimento de uma sociedade de fato pode trazer repercussões relevantes para os seus membros. Via de regra, uma vez reconhecida a sociedade de fato, ela estará sujeita às normas que regem as sociedades não personificadas e, no que for compatível, pelas normas que regem as sociedades simples. Este conjunto de regramentos previstos nos artigos 986 a 990, e 997 a 1.038 do Código Civil Brasileiro são relativamente simples e muitas vezes não refletem o que as partes, de fato, pretendiam entre si. Dentre estes regramentos, certamente o que mais se destaca diz respeito à responsabilização dos sócios, que podem responder com seu patrimônio pessoal se o patrimônio da sociedade de fato não for suficiente para fazer frente a uma dívida, por exemplo.
Em outras palavras, na hipótese de um dos parceiros contrair uma dívida em prol das atividades comerciais da parceria e não a quitar, o outro parceiro poderá acabar respondendo também por ela. Para tanto, este terceiro que teve seu crédito inadimplido, mas tem ciência da existência desta parceria comercial, poderia ajuizar uma ação de reconhecimento de sociedade de fato e pleitear que esta nova sociedade responda pela dívida e, se o seu patrimônio/recursos não for suficiente, o patrimônio pessoal dos sócios será atingido.
Além disso, há também repercussões importantes no campo fiscal. Uma vez reconhecida a existência da sociedade de fato, ela passa a ser sujeita à tributação de seus resultados, semelhante a uma sociedade regularmente constituída (a falta de formalização não exime a sociedade de fato de sua responsabilidade tributária). Além disso, o entendimento consolidado dos Tribunais é no sentido de que, para fins fiscais, os mesmos princípios que se aplicam às sociedades registradas também são aplicados às sociedades de fato, principalmente no que tange à responsabilidade dos sócios pelas dívidas tributárias.
Assim, para que uma parceria comercial permaneça sendo apenas uma parceria comercial, sujeita ao Direito Contratual, devem ser tomados alguns cuidados básicos, tais como:
-A formalização da parceria através de um contrato escrito versando em detalhes sobre a parceria comercial pretendida, indicando o que cada parte agregará, a sua função, os custos que cada uma arcará, a forma de remuneração, e como a parceria pode ser prorrogada ou encerrada;
-A manutenção de recursos e gestão independentes entre os parceiros, que podem sim atuar em conjunto, mas cada um gerindo a sua parte;
-Na comunicação com terceiros, é importante deixar claro que os parceiros são empresas distintas e independentes, que apelas colaboram em aspectos específicos, e que cada uma responde pelos seus serviços.
Estes cuidados relativos à formalização adequada das relações de parceria comercial entre empreendedores são fundamentais para prevenir a caracterização de uma sociedade de fato, protegendo as partes envolvidas de implicações jurídicas indesejadas.
Nesse sentido, é sempre recomendada a consulta a um advogado especialista para orientação e elaboração dos contratos necessários.
A equipe societária do Cerqueira Leite Advogados está à disposição para eventuais dúvidas e esclarecimentos.
[1] Do latim, cujo significado, em tradução livre é “afeição social”, a vontade de duas ou mas pessoas associarem-se ou permanecer associadas.